Distanciamento Familiar

Suellen Escariz
4 min readApr 29, 2021

O período de confinamento obrigatório trouxe à tona diversas questões sociais, para além de questões como depressão e distúrbios psicológicos variados, que já eram muito debatidos, levantou também questões relativas às relações familiares. É notório que os números de divórcios e também de casamentos sofreu um impacto direto durante o período de restrições à liberdade.

Este artigo de opinião procura focar o debate numa relação familiar específica, não que as demais questões sejam de menor importância, pelo contrário, todas são de debate e soluções urgentes e necessários. Porém, diante de um certo silêncio quanto a esta específica, o presente texto pretende trazer à discussão as relações entre pais e filhos, e parte de uma premissa de que não foi o confinamento que causou piora, o confinamento apenas evidenciou e trouxe à percepção geral algo que já se passava.

Tem-se como lugar comum o desespero dos pais em ter os filhos a tempo inteiro em casa. E, de facto, a responsabilidade de trabalhar e cuidar das atividades do filho a tempo inteiro é cansativo e desgastante e, quanto a isso, não se pode questionar. A maneira de lidar com tal realidade, é a maneira de compreender e relacionar tais questões com a vida prática, com os pensamentos e sentimentos que envolvem as pessoas que passam por tal situação. Para ir direta ao ponto, é preciso ter atenção a quantas vezes foram ditas as frases: “não aguento mais os filhos em casa”; “não vejo a hora que voltem às aulas presenciais”; “o meu filho está a pôr-me maluca”.

O ambiente familiar é onde os valores são passados e ensinados à geração seguinte. Quando ocorrem falhas na comunicação, distanciamento ou até mesmo uma usurpação deste lugar, não só os filhos sofrerão as consequências, mas também toda a sociedade. Em contra-ponto ao que muitas pessoas pensam, o abandono afetivo não é algo que ocorra apenas quando os pais são divorciados, acontece muito com pais presentes fisicamente também. Há muitos que pensam que a obrigação dos pais/mães em relação aos filhos está somente adstrita a questões materiais. O “tenho a consciência tranquila” é traduzido por um “eu pago todas as contas, nunca deixei faltar nada” ou ainda “eu pago a pensão de alimentos todos os meses”, mas as obrigações dos pais não se resumem ao sustento financeiro.

O abandono afetivo é algo mais complexo e muitas vezes ignorado. A família cumpre o papel social de ser a primeira base e lugar de segurança para um indivíduo, durante os anos em que sua personalidade e valores estão a ser formados. No convívio familiar são ensinados valores e princípios que, posteriormente, serão praticados por essas crianças e jovens. Quando existe um distanciamento entre pais e filhos, quando não há uma perspectiva da importância de estabelecer laços de afeto, laços de apoio e de orientação quanto às questões da vida, haverá sempre uma diminuição nos valores destes indivíduos, o que irá, por fim, refletir nas suas escolhas pessoais e em seu comportamento na sociedade.

A discussão jurídica relaciona-se à indemnização por responsabilidade civil em casos de abandono afetivo. O que significa dizer que em casos nos quais os pais sejam negligentes em orientar, ensinar princípios e valores, dispensar tempo de qualidade com os filhos poderá, existir a possibilidade de incorrer numa condenação por tal razão. É possível compreender que haverá maior possibilidade de produção de provas em casos mais extremos, como aqueles em que o pai, apesar de cumprir suas obrigações financeiras, não dispensa atenção ou convivência com os filhos, porém, não são as únicas ocorrências do abandono. A jurisprudência estrangeira sobre o tema é predominantemente contrária a este tipo de condenação, porém, muitos já são os casos em que compreendidas as consequências, a indemnização pecuniária torna-se um meio, não diretamente para suprir o afeto (que não poderá ser substituído por dinheiro), mas antes, para alertar e ensinar tanto aquele que é condenado, como, principalmente, a sociedade como um todo.

Para além dos casos mais óbvios de abandono afetivo, é preciso prestar atenção quanto à relevância do convívio e aprendizagem no ambiente familiar. A escola ensina matemática e ciências, ensina conhecimentos objetivos. A família é que orienta, prepara e contribui de maneira decisiva para formação de carácter do indivíduo. Os valores e princípios que sustentam a sociedade e a convivência pacífica não são ensinados na rua, são ensinados dentro de casa, através de diálogo e presença, são ensinados também através do afeto.

A discussão quanto aos aspetos jurídicos do tema ainda deve seguir. Há muito o que se debater acerca da possibilidade de ser ou não indemnizável a falta de afeto e presença familiar, porém, a parte social e a reflexão acerca de como as relações familiares são desenvolvidas neste tempo é sempre válida, muito mais proveitoso é trazer o tema à debate e impedir que este tipo de abandono ocorra do que deixar o tempo e as discussões jurídicas encaminharem apenas para a condenação. Vale mais que o tema seja apresentado e exemplificado para que haja um maior cuidado e atenção.

Este artigo de opinião, muito além de definir se há cabimento para uma responsabilidade civil dentro do Direito de família, quer encaminhar esta temática jurídica para a realidade social de cada indivíduo que considere refletir sobre o tema. Inserir a compreensão da importância do ambiente familiar na formação dos indivíduos, o papel social da família como base e também como primeiro contato social do indivíduo em formação, todas as influências recebidas durante o período da infância e adolescência e, assim, permitir que cada um faça a autoavaliação quanto aos próprios comportamentos, quanto à influência que exerce em seu ambiente familiar. Antes que haja uma definição jurídica sobre o tema é mais importante que haja um posicionamento social, é mais justo prevenir que aconteça o abandono do que remediá-lo tardiamente, é um cuidado pessoal que contribui para o bem comum e para a vida em sociedade como um todo. A família é o local em que valores são estabelecidos, essa função não pode ser usurpada.

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